segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Luzes

daqui posso ver as luzes da cidade
é uma madrugada de dezembro
época de natal
como poderia ser qualquer outra época
qualquer outro momento
outra pessoa até
entretanto sou eu
e as luzes estão lá
reluzem, brilham, iluminam
mas não são como as estrelas
que de onde estou nem as vejo
nenhuma
e quando procuro um pouco mais
estão lá, sim
quietas, palidas
parecem que ofuscadas, intimidadas
ante esse espantoso espetáculo luminoso da cidade
porém possuem uma luminosidade estranha
misteriosa
não saberia dize-la exatamente
uma luz vinda de longe
tão longe
e que no entanto esta aqui
dentro dos meus olhos
pena que na cidade elas sejam tão poucas
ainda um dia desses estive na campanha
e lá sim
pude ver quantas são
são muitas, muitas mesmo
e e´muito , muito bonito vê-las
e a gente fica aqui
apreciando estas lâmpadas
luz morta, fria, artificial
as estrelas não
elas são vivas
viver é ter luz própria

Passaro azul

um passarinho azul
inventa um novo pensamento
e sai voando da minha janela
para se misturar com outros azuis
azuis de tantos céus
anda por aí
a te procurar
pra entregar uma mensagem
através do telegrafo do vento
pois o vento que é o seu canto
irá te beijar
depositar em teus lábios, palavras
nos teus olhos, imagens
e nos teus ouvidos, seu som
vai o passaro azul
invisivel azul contra os azuis
voando a te procurar
e se qualquer dia sentires
uma brisa cantar em tua alma
mesmo que nada vejas
saiba que este louco passaro te encontrou
e esta mandando noticias pra mim

Ser o sol

uma eterna missão
igual a cada manhã
de iluminar os planetas
que amanhecem todos
cada um na sua vez
ser persistente e novo
ser vida
ser fonte
ser água limpa
para saciar o sedento
para correr e acariciar
um corpo que se banha
sol, água, terra
não me canso de sonhar
pois esta é minha profissão
profissão de fé
fé no homem e seu destino
fé no suor, na pele com pele
no calor e no sorriso
no sorriso franco
no sentimento de entrega total
que é no final de tudo
a própria liberdade
não ter receios
nem medos
nem preconceitos
ser como o sol
a cada dia novo
criança aberta ao mundo
ao conhecimento
que se possa obter
e ao mesmo tempo
num infinito girar

invisível ("alguém invisível ri baixinho")

nesses momentos assim
quando estou só
e ouço uma música
ou um ruido qualquer
vindo da noite la fora
eu lembro de ti
e sinto uma vontade imensa
de poder conversar contigo
quanta coisa teriamos para conversar
o que eu teria para te contar
e o que haverias de me dizer
será que me entenderias
será que captaria a essência
o gosto exato
a cor da palavra
do que eu estaria dizendo
será que a beberia
com aquele brilho nos olhos
de quando ouvimos o outro falar
com a nossa voz
sonhando nossos sonhos
quando a boca da pessoa que nos fala
fala com a nossa lingua
eu te contaria do que fiz
e muito mais do que farei...
mas eu falo contigo de vez em quando
embora não me ouças
e nem saibas
ou quem sabe sim
e me respondas até
muito, muito ja te falei
pela rua, os outros me olham
quando passo conversando contigo
quem sabe até pensam que sou doido
porque eles não sabem que tu existes
como entenderiam?
se talvez nem existas mesmo

Incessante

estou cada vez mais só
as pessoas que conheço
só são gente por fora
onde estarão meus iguais?
será que eles existem?
ou será que
eu é que não sou gente
o que há de errado em tudo isto?
risos gratuitos
palavras vazias
eu quero que o mundo viva
eu quero um mundo justo
mas não basta apenas gritar
mas não basta apenas pensar
temos que faze-lo
temos que construi-lo
temos que transforma-lo
e isso se faz com as mãos
e o coração

Anaí, a flor da corticeira

(letra de milonga inscrita em festival de música nativista do Rio Grande do Sul)

no limiar do século dezenove
nos sete povos em ruína
sem documento que o prove
nascia uma menina

seria coisa corriqueira
não fosse o anhang da indiazinha
Anaí, a flor da corticeira
o que o pajé adivinha

adivinha então a sina
adivinha ali a missão
de quem traz o brilho da guia
no meio da escuridão

de escura desesperança
que assola um povo sem terra
cuja patria foi tomada
pelas agruras da guerra

guerras que extinguem raças
que aniquilam nações
que nunca respeitam sonhos
que não escutam corações

lutar não tem sentido
em guerras de hoje e de ontem
de nada vale morrer
por interesses de outrem

Anaí, guia de sua gente
soube assuntar, tomar tino
colher com a flor, sabedoria
soube tecer o destino

na cabeleira negra ao vento
a flor rubra da corticeira
com seu exército de chinas
trazia a paz como bandeira

e no meio da batalha
na batalha que não se fez
tombou a valente cunhã
e em labareda se esfez

eis a lenda de Anaí
a flor rubra missioneira
de rubro sangue guarani
derramado na fronteira

eis a lenda de Anaí
que esta lição nos traz
mais do que as glórias da guerra
vale um tempo de paz

Negrinho

(letra de milonga inscrita em festival de música nativista do Rio Grande do Sul)

negrinho, ah meu negrinho
do sem tempo, sem lugar
tu que vieste cavalgando
um baio raio de luar

vindo da lenda pampeana
no estribo de tua tenência
campeaste minh'alma haragana
desgarrada da querência

até esqueci de minha história
por este andejar a esmo
perdido de minha origem
extraviado de mim mesmo

mas foi numa tertúlia
na volta de um fogo de chão
a canha ganhava a roda
passava de mão em mão
a cordeona e a guitarra
vai milonga e vanerão
o carreteiro de charque
charla e causos de galpão
a imponência do taura
o riso largado do peão
o orgulho por ser crioulo
por ser cria deste chão

eu que vinha da cidade
não conhecia a tradição
eu não existia negrinho
nasci naquele fogão

o assovio do minuano
entranhou dentro de mim
não esqueço aquela noite
noite de estrelas sem fim

sem fim o enorme silêncio
a própria voz da imensidão
a contar-me o que eu não sabia
que trazia no coração

negrinho, ah meu negrinho
do sem tempo, sem lugar
tu que vieste cavalgando
um baio raio de luar
negrinho, ah meu negrinho
quisera fazer-te oração
mas não sei rezar negrinho
então fiz esta canção
como se fosse uma vela
que acendesse pra ti
pra que ilumines a alma
de outros tantos por aí

florescerá

(letra de canção inscrita em festival nacional de música, lembra dela?...claro que não...não passou...)

Menina,
teu nome é terra
e vem de ti,
o verso tecido a mão,
o fino fio da razão,
de existir,
Um traço, uma cerveja
bebida assim do teu lado
um pedaço de um labio antigo
um gosto de vinho
de vidro
de vida
devida
benvinda!
benvinda quando vieres,
que sejas linda,
como no sonho,
tingido de azul, milhares
ah terra,
essa luta, essa guerra,
quanta mentira encerra,
tanta injustiça,
me diz porque?
se foi pra ti,
que tudo nasceu,
diria sim, por ti,
que o sol se inventa todo dia,
e se faz outro, a cada instante...
a cada instante...
Ah, eles nem sabem, terra!
quantos mares inundamos,
quanta semente espalhamos,
por aí,
que quando começar a brotar,
que susto!
o justo,
finalmente,
florescerá!

Bolicheira

(letra de Vaneira inscrita em festival de música nativista do Rio Grande do Sul)
(premiada como a mais popular)

certa feita num bochincho
mui embeleca e faceira
apresentou-se uma marca
batizada bolicheira

quando o indio abriu a gaita
tomou conta a polvadeira
ninguém mais quis o bugio
nem milonga, nem rancheira

sei de rengo que bailou
mui levado da casqueira
e nem as chinas mais feias
ficam pra trás na carreira

não há polca nem mazurca
nem mesmo valsa ligeira
seja xote ou limpa banco
nada bate a bolicheira

o fandango não acaba
nem com sol na cumeeira
quando a cordeona anuncia
esta tal de bolicheira

oigale-tchê coisa linda
marca especial de folheira
o povaréu se largando
no lombo desta vaneira

sei de rengo que bailou
mui levado da casqueira
e nem as chinas mais feias
ficam pra trás na carreira

não há polca nem mazurca
nem mesmo valsa ligeira
seja xote ou limpa banco
nada bate a bolicheira

Vertente dos Ventos

(letra de milonga inscrita em festival de música nativista do Rio Grande do Sul)

Origem de nossa história
desde "esta terra tem dono"
escrita com sangue e suor
de indio, negro e colono

fonte de toda bravura
que nutre a alma pampeana
és mesmo a marca da raça
que de cada taura emana

aurora, fonte, ventre, vertente
no horizonte do tempo
nascente, origem, semem, semente
brota a vertente dos ventos

ventre que a cada estação
prepara os frutos pra gente
que vive neste rincão
cantando nosso poente

aurora parto de luz
dourando o trigo maduro
em claros raios traduz
certeza pelo futuro

aurora, fonte, ventre, vertente
no horizonte do tempo
nascente, origem, semen, semente
brota a vertente dos ventos

semente frágil mistério
a magia em ti contida
revelas na floração
a própria razão da vida

nascente de larga pureza
no tempo novo que encerras
homens e natureza
cumprirão então afinal
o destino da terra

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Sim eu, não eu

olha e vê
quem tens ao lado
o mundo
e quem sabe
a única saída

era uma laranja lindíssima
de uma cor inacreditável
sua pele, perfeita
mas não tinha gosto nenhum
seca, como a alma dessas pessoas
que andam comigo no ônibus
que cruzam comigo na rua
que nunca me viram
que não existem
seca, como eu pareço
como elas parecem
parecem tanto consigo mesmas
com todas as outras
mas não comigo
que pareço tanto com elas
sim eu
não eu

futuro

eu estou sentado em um canto qualquer
e você chega e me pergunta
o que eu espero do futuro
você chega e me diz
estude e seja um grande homem
ah, meus importunos anjos da guarda
eu não espero nada do futuro
ele não existe
e não há nada além do agora
saboreie o momento
mesmo os planos
são todos edificados em cima de brumas
que se desmancham com o vento da manhã
ah, meus incansáveis anjos da guarda
o mundo esta saturado de grandes homens
com grandes massas cinzentas
eu, querido anjo
se me abrirem a cabeça
espirrará, além de sangue, mel
e minha alma se libertará
na forma de uma pequena e omnicolorida borboleta
que voará para dentro do seu coração

nunca mais

nos meus olhos descoloridos agora chegou a hora do fim
quando minha alma estiver contando os minutos que faltam
ela vai chegar próximo de mim
e vai me chamar, me atiçar, me provocar
então renascerá uma luz em meus olhos
mas você não vai ver
você vai apenas sentir os seus sentimentos transbordarem
e escorrerem pela sua face
enquanto ela me leva para seu leito, louco
enquanto você estiver ouvindo o eco do meu coração em sua mente
ela estará me seduzindo, saboreando todo o meu corpo
e eu entregue totalmente ao seu calor
como és doce e misteriosa mulher
és trapaceira, traiçoeira, sádica
ama e depois mata, rainha!
tens vinho e fel na boca
além de um licor doce e venenoso
que eu vou degustar para depois
nunca mais precisar mentir
nunca mais

A morte do gato preto

um cheiro de ovo podre exala de teus lindos olhos verdes gentil senhora
a bruxa má voltou para presentear a maçã da morte
tens uma bela casa senhora, belos carros e muito luxo te cerca
mas por detrás de tua bondade comprada com louváveis ações sociais
escondes a amaldiçoada verdade
porque o velho e negro felino te incomoda tanto?
porque este ódio no olhar e esta baba no canto da boca?
certo dia o gato preto apareceu seco feito pedra, envevenado
e nada mais havia que se pudesse fazer
a não ser olhar um resto de vida se dissipando em forma de dor
é dessa forma que age a humanidade
envenenando-se
e sem saída
aguardando a morte

Homem

longe dos campos esta ele agora
andando por uma rua, ao mesmo tempo, medonha e luminosa
os seus pés vão amassando as pontas de cigarro
e sua roupa esfarrapada varre o chão
homem simples, trabalhaste a vida inteira e agora perdeste todo o valor
velho e doente esperas a beira dos prédios a tua hora de adormecer
de descansar o corpo desgastado
o tempo impiedoso atravessou a sua própria imagem
ultrapassou-se num redemoinho onde podia-se distinguir
os cabelos escoaçando, as roupas molhadas colando ao corpo
e o calor de outro corpo enraizando no seu
onde estão teus filhos pobre homem, onde estão teus anos
eles te homenagearão com uma cruz fincada no peito
fincada na terra, quando te fores
a mesma terra que trataste irmã
agora te terá nos braços
dorme criança, esquece a velhice e adormece em tua simplicidade
que este teu sorriso vazio de morte
vale mais do que fizeste a vida inteira

anotação

pouca coisa resta para nós
divirtam bestas famintas
com as migalhas que lhe são oferecidas
as linhas,
todas elas,
encontram-se no horizonte

o beijo

quando o beijo estala no ar
as substâncias dos corpos se misturam
as almas se fundem
e o coração se desfaz

O povo azul

eu faço parte de um povo
que não tem pátria
que não tem religião
que não tem terras
que não tem população
é um povo que não existe
é um povo que habita os sonhos
de todos quanto ainda sonham
de olhos bem abertos
pra dentro de sí
pra verem daí
o mundo inteiro
um povo azul

meus passos

meus passos
marcam o chão
deixam pra trás
tanta ilusão
caminham perdidos
pelo que chamam destino
nada se divisa em frente
nem mesmo escuridão
nem siquer o desconhecido
nem um abismo
nada
é pra onde eu vou
e neste caminho
só quem pode me acompanhar
é você
solidão

fragmento de alguma canção

um povo de olhos pesados
vive neste lugar
remoendo ódios passados
nem sabe mais cantar
a flauta da cordilheira
pouco a pouco se calou
negaram sua bandeira
o carnavalito acabou
no ar paira o desespero
da força da fome
que esmaga e consome
a gana do guerrilheiro

morrer=nascer

eu estou me assassinando
e nesta agonia procuro
um tanto de força que resta
para tentar respirar
eu estou me asfixiando
pra dar a volta na vida
pra romper a fina película
que me separa de mim

Eu

Eu
não sou deste mundo
nem de outro tampouco
eu sou
o mundo que não existe
um vir a ser
um prestes a explodir
talvez amanhã
talvez nunca
uma coisa assim
feito esperança
igual a um ovo
talvez amanhã
talvez nunca
hoje
é apenas o medo
eu

"a ave sai do ovo
o ovo é o mundo
quem quiser nascer tem que destruir um mundo
a ave voa para deus
e deus se chama abraxas"
Herman Hesse

Vida

Abrir o olho de manhã
é tão bonito
ver o sol se espreguiçando
nas folhas da bananeira
uma paz de vaca pastando no quintal
passarinho alçando vôo do ninho
cantando a vida faceiro
janelas abertas pro mundo
tudo verde na terra
tudo azul no céu
adormecer na varanda
com o vento afagando o cabelo
e lua a me ninar
vida seria assim,
vida seria isso
acordar com canto de passarim
um violão e uns versos de Quintana
assistir o sol se por bem devagarim
e ter de noite o amor de Juliana

Morrer para morrer

ninguém parece entender
as coisas são assim mesmo
de nada adianta correr
que nossa fuga é a esmo
não importa a direção
sempre vai dar em nada
não há outra opção
nessa estrada abandonada
quando chegar a hora
alguém dirá, tarde demais
pague a conta e vá embora
tu és apenas um a mais
o nosso tempo passou
e nós ficamos parados
tudo o que nos restou
foi um grito desesperado
nada existe de novo
é tudo repetição girando
confundindo os olhos do povo
que segue ainda aguentando
não me olhe desse jeito
não sou apenas um louco
o que apodrece nesse leito
é todos nós um pouco
não podemos nos entregar
pois capitular é morrer
conheces o dito invulgar
é preciso morrer para morrer

Meia Noite

buzinas...quisera ouvir teu canto
ruidos... quisera cantar contigo
palavras...quisera dizer verdades
luzes...quisera sorrir contigo
explosões...quisera andar tranquilo
sorrisos...quisera amar contigo
cervejas...quisera falar bobagens
silêncio...quisera dar muito mais
mas agora tudo é solidão
e toda minha tristeza vem de saber
que a meia noite é assim
como a partida de quem nunca chegou
ou o adeus de quem sempre estará aqui
porque é uma longa história
porque é uma serpente infinita
deslizando, passando por nós
porque é tudo, uma única existência
dividem, parcelam, distribuem
míseras partes para cada um de nós
e o que nos importa isso
se não há maneira de quebrar o tempo
esses números, essas datas
pra mim são pura encenação
mesmo assim
escrevo umas palavras esparsas
nos primeiros minutos de algum novo ano
nem esperança
nem descrença total
apenas continuação
longa como uma mão estendida

Lua Cheia (à maneira de Chico Buarque)

ninguém sabe das noites malucas
a lua sabe
ele me atiça, provoca, cutuca
ele me sobe
joga longe o travesseiro
joga seu corpo no meu
queira ou não queira o parceiro
tudo que tenho é seu
precisa ver como brinca o safado
seu corpo afundado no meu
me xinga, me bate, sai cansado
depois que fogueira ardeu
vai embora como veio
pra voltar quando menos espero
apalpar-me nádegas e seios
se não vem, me desepero
afago as marcas roxas
que deixou pra me agradar
aliso e abro minhas coxas
pra quando ele voltar
embriagado como de hábito
co'as mão cheias de calo
seu costumeiro mau hálito
e seus carinhos de cavalo
mas se pensam que reclamo
estão enganados meu nêgo
a verdade é que eu te amo
te amo, gosto e não nego
hoje a lua esta cheia
e por certo a noite será
eu sou mesmo a sua ceia
e ele se fartará

A lingua dos corpos

deixe a noite chover
deixa o mundo cair
deixa a vida correr
deixa o sangue fluir
tua voz dança suave nos meus sentidos
explode a terceira guerra, que importa
na tua presença tudo passa despercebido
feito o sangue passeando na veia aorta
deixa a noite nascer
deixa o mundo ruir
deixa a vida morrer
deixa o sangue subir
e continue a dançar
o teu calor enraiza em mim
teu gosto de sal adoça minha boca
o sal do mar não tem fim
nosso amor não é coisa pouca

Gato Vadio (falência de uma civilização)

por enquanto
mantenha as aparências
faça e aconteça
deixe-me morrer então
mas do meu jeito

se te desacato e assombro
com versos de insatisfação
é que divisas nos ombros
terno, gravata ou fardão
cheiram mal sob os escombros
de tua civilização

atrapalho teu sono
como um gato vadio
e do telhado que és dono
ensaio a revolta num mio

gritas por moral e bons costumes
do alto de tua decência
mas não encaras nem assumes
tua própria consciência

passas pela fila indiferente
afinal és o chefe da repartição
tu és um exemplo de gente
e eles, e eles o que são?

tu, como rico ris atoa
mas eles tem motivo pra gemerem
morrendo um a um sob a garoa
não tem mais por que temerem

nos teus discursos, milhões de mentiras
vomitas sobre os ignorantes
não importa a quem firas
leva teus ideais adiante

será que eles sabem
e se souverem hã?
eu só sei que eles sofrem
nesta noite sem manhã

mas numa noite de natal
um mendigo sujo e esfarrapado
um brilho agudo de punhal
um doutor assassinado

vão ser páginas de jornal
hipocrisia em homenagens
mais uma vítima fatal
da violência e outras bobagens

pelo menos o jornal do dia
vai servir de agasalho
pra abrigar a agonia
de um faminto espantalho

adormecido no banco da praça
que agora leva teu nome
entorpecido pela cachaça
que rechaça o frio e a fome

hoje o maldito gato vadio
faz ronda na tua mansão
só durma depois de rezar muito, ouviu!
e alerta bem o teu cão

eu canto a falência
de uma civilização
que jaz na inconciência
de sua alienação

boa noite
durma bem
...miau!

...e eles tinhão razão (A idade do pó)

cada vez mais
o simples de entender
torna-se incompreensível
o azar é meu
destruam tudo
o que é e o que não é
matem-se todos
joão, maria e josé
quando soar o último grito de dor
ja não estarão mais aqui
a festa estará acabada
as garrafas vazias
ja não sinto pelo que vejo hoje
e que amanhã será pó
é a ascensão da idade do pó
não desesperes amigo
quando olhares o céu
e não vires mais o que vias antes
tudo gastou
e triste então reconhecerás
...eles tinham razão

Viagem nos olhos de alguém ou...Anne...

uma noite escura
um corredor branco
meus olhos são a procura
da minha imagem nos teus

onde andará teu olhar
olhos negros extraviados
onde andarei eu, perdido
no tempo do outro lado

longe de tudo e de todos
buscam o que não existe
íris paralisada que assiste
a dança de prismas drogados

é um labirinto arriscado
tua viagem alucinada
a caminho não sei de quê
talvez a terra do nada

imitação do teu sonho
de água, fogo, terra e ar
na parede do fim do mundo
eu sei que nunca vais chegar

Aranhas de Jardim

todos nós somos crianças
inventando novos sonhos
como um barco que avança
sobre mares medonhos
feito a arte do jardineiro
devia ser a realidade
seu jardim não dá dinheiro
não existe falsidade
não habitam plantas caras
nem flores artificiais
apenas graciosas fadas
e uns pequenos animais
filhos da lua triste
que vaga no firmamento
tecelãs da vida que insiste
em procurar respostas no vento

Sobre mim

sobre mim
nem mesmo eu sei
sou como o fim
do que não chegou a acontecer
apenas pensamentos irreverentes
fluindo a toa, indiferentes
não mais do que alguns momentos
em lugares diferentes
qualquer conclusão
jamais será definitiva
quando trata-se de paixão
não há razão que sobreviva
sou um quebra cabeças
de peças extraviadas
espero que não me esqueças
antes que termine a estrada
analisam gráficos
cavam origens
enquanto ando por aí
respirando esta fuligem
nas minhas culpas
mais uma cruz
na minha cruz
mais uma culpa
mas suas fichas contam
para minha avaliação
as portas do inferno
ou as do teu coração